domingo, 28 de outubro de 2007

Arrumações

Arrumar o quarto é detestável, agonizante e perigoso. No meio de roupa, livros, algemas e Barbies, há sempre aqueles pequenos objectos pontiagudos que nos cortam os dedos quando não estamos a olhar. Pior que arrumar um quarto, apenas arrumar dois quartos ao som das “piadas” do Nilton.
Mas arrumar o quarto pode também trazer-nos óptimas reminiscências. Foi o que me aconteceu esta tarde. Ao fim de cinco minutos de arrumação, a minha enfadonha cara de tédio transformara-se já, espelhando agora grande alegria e regozijo. O meu quarto, eterno monte de entulho encarnado, revelara-se um perfeito álbum de recordações. Qual ADN, qual biografia ou álbum de fotografias, o meu quarto contava a minha vida como nada e ninguém.
Num canto a minha primeira action figure do Dragon Ball, noutro o meu primeiro Diablo. Numa estante a minha medalha de 27º lugar no corta-mato da escola, ao lado do meu primeiro dente de leite, que por sua vez está encostado ao meu primeiro dedo "de leite”, nome que lhe dei para atenuar a sua perda. Perto, na parede, o buraco por onde um dia pensei a minha fuga. Na cama a almofada que guardo desde bebé, no meu guarda-roupa a minha primeira namorada…
Incrível. Eu revia-me no meu quarto.
O meu quarto é-me.
Eu sou o meu quarto…

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Sub-90

09:23.
Esperava pelo autocarro que me levaria para outras bandas e o dia até que nem me corria mal: tomara um bom pequeno-almoço, e no caminho para a paragem não me cruzara com nenhum javali.
Sozinho, deixei-me levar pela preguiça e fechei os olhos por mais um pouco. Foi quando senti alguém acercar-se de mim e ao meu lado sentar-se. Era um velhinho.
Frágil, lento e amável sorriu para mim. Lembrei-me que desde pequeno os meus pais me aconselhavam a não cumprimentar velhinhos, pois eles eram “manhosos, traiçoeiros e velhinhos”, mas num rasgo de simpatia soltei um “bom dia”.
Visivelmente regozijando, o velhinho todo ele sorriu.
Bom dia! Tá frio hoje, não?”, perguntou-me animado. Respondi-lhe afirmativamente, e num rasgo de sabedoria popular acrescentei “E parece que vem aí trovoada. Uma pessoa já não consegue perceber o tempo. Tá tudo trocado, e a culpa é do Bush, aquele bandido…”.
Acabara de assinar a minha sentença e nem sequer me apercebera. Inocentemente desencadeara uma conversa que agora sei não queria ter. Da política à columbofilia, do futebol ás técnicas de captação de aguás subterrâneas, divagamos um pouco sobre tudo. A cabeça começara a doer-me como nunca. Desistira de falar e limitara-me a ouvir.
Quinze minutos volvidos e encontrava-me em estado de catarse. Deixara de sentir os membros, e sabia o colapso inevitável. Fitei o velhinho uma última vez. Sorria.
Desmaiei.
Acordei horas mais tarde, despenteado e gelado, deitado no porto de Leixões. A carteira e o telemóvel continuavam-me nos bolsos, mas estava descalço. O velhinho roubara-me as sapatilhas.
Raios! Raios pós velhinhos e a sua fixação por sapatilhas…”.

(A minha verdadeira experiência pode vagamente variar da aqui escrita.)